Sam The Kid - Tabacaria
20
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Álvaro de Campos
TABACARIA
TABACARIA
Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
Janelas do meu quarto
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamentе certa
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos sеres
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro
Falhei em tudo
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada
A aprendizagem que me deram
Desci dela pela janela das traseiras da casa
Fui até ao campo com grandes propósitos
Mas lá encontrei só ervas e árvores
E quando havia gente era igual à outra
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu
E a história não marcará, quem sabe?, nem um
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras
Não, não creio em mim
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —
E quem sabe se realizáveis
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira
E ouviu a voz de Deus num poço tapado
Crer em mim? Não, nem em nada
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha
Escravos cardíacos das estrelas
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco
Levantámo-nos e ele é alheio
Saímos de casa e ele é a terra inteira
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos
Pórtico partido para o Impossível
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas
E fico em casa sem camisa
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam
Vejo os cães que também existem
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz
O dominó que vesti era errado
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me
Quando quis tirar a máscara
Estava pegada à cara
Quando a tirei e me vi ao espelho
Já tinha envelhecido
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime
Essência musical dos meus versos inúteis
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte
Calcando aos pés a consciência de estar existindo
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo
Ele morrerá e eu morrerei
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta
E a língua em que foram escritos os versos
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas
Sempre uma coisa defronte da outra
Sempre uma coisa tão inútil como a outra
Sempre o impossível tão estúpido como o real
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim
Semiergo-me enérgico, convencido, humano
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos
Sigo o fumo como uma rota própria
E gozo, num momento sensitivo e competente
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?)
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu
TABACARIA
TABACARIA
Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
Janelas do meu quarto
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamentе certa
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos sеres
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro
Falhei em tudo
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada
A aprendizagem que me deram
Desci dela pela janela das traseiras da casa
Fui até ao campo com grandes propósitos
Mas lá encontrei só ervas e árvores
E quando havia gente era igual à outra
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu
E a história não marcará, quem sabe?, nem um
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras
Não, não creio em mim
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —
E quem sabe se realizáveis
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira
E ouviu a voz de Deus num poço tapado
Crer em mim? Não, nem em nada
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha
Escravos cardíacos das estrelas
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco
Levantámo-nos e ele é alheio
Saímos de casa e ele é a terra inteira
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos
Pórtico partido para o Impossível
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas
E fico em casa sem camisa
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam
Vejo os cães que também existem
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz
O dominó que vesti era errado
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me
Quando quis tirar a máscara
Estava pegada à cara
Quando a tirei e me vi ao espelho
Já tinha envelhecido
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime
Essência musical dos meus versos inúteis
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte
Calcando aos pés a consciência de estar existindo
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo
Ele morrerá e eu morrerei
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta
E a língua em que foram escritos os versos
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas
Sempre uma coisa defronte da outra
Sempre uma coisa tão inútil como a outra
Sempre o impossível tão estúpido como o real
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim
Semiergo-me enérgico, convencido, humano
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos
Sigo o fumo como uma rota própria
E gozo, num momento sensitivo e competente
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?)
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu